Maria cometeu pecados?

A Imaculada Conceição da Santíssima Virgem Maria

 

TRATA ESTE ESTUDO de um assunto de fundamental importância, não só para a nossa devoção, – nós, católicos, – pela Santíssima Virgem, como também para a fé cristã como um todo: a Imaculada Conceição de Nossa Senhora.
 
A doutrina da Imaculada Conceição (ou Imaculada Concepção) é um dogma da Igreja, e certamente um dos mais mal compreendidos. Um dogma, como vimos aqui, é uma verdade de fé que deve ser crida por todo cristão (assim como a própria existência de Deus, que é o primeiro dogma: se não cremos em Deus, para começar, não há como nos considerarmos cristãos). Logo, todo cristão deve crer na Imaculada Conceição da Santíssima Virgem Maria. Ideal, porém, é conhecer para crer melhor. Para começar, é preciso entender muito bem o que quer dizer, exatamente, “Imaculada Conceição”.

A expressão "Imaculada Conceição" quer dizer que Nossa Senhora foi concebida sem a mancha do Pecado original, não tendo jamais pecado durante toda a sua vida. Mas como pode ser isto?
 
Antes de tudo é preciso saber que o Pecado original não consiste na dívida de pena eterna, isto é, no castigo condenatório merecido pelos descendentes de Adão, ele que era a cabeça do gênero humano. Segundo a doutrina católica (cf. Concílio de Trento), o Pecado original, verdadeiro e estrito pecado, é a dívida da culpa (cf. Dz 376, 789, 792). Assim é que S. Paulo Apóstolo decreta: "...Todos temos pecado" (cf. Rm 5,19). 
 
Deste modo, todos herdamos o Pecado original de nossos pais, eles de seus pais e assim sucessivamente até o primeiro homem. – E os efeitos do Pecado original são a tendência para o mal e para a inimizade com Deus. – Assim, a Virgem Maria também precisou ser salva, assim como qualquer um de nós, pelo Sacrifício Redentor de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela, porém, diferente de nós, já no instante de sua concepção foi preservada do Pecado original; consequentemente, foi poupada dos seus efeitos, já que foi remida não da maneira comum a todos (pelo Batismo), mas de maneira tal que a preservou de cometer pecado ou de sequer desejar cometê-lo.
 
Quando Pio IX proclamou o dogma, estabeleceu explicitamente que a Imaculada Conceição de Maria ocorreu por causa da Graça única de Deus, em vista dos Méritos de Jesus Cristo. Por isso, o problema da usurpação por parte de Maria do lugar de Cristo não existe. Ao contrário, o privilégio de Maria tem como fundamento a Graça salvífica de Deus em Cristo. 

Podemos usar de uma comparação simples para facilitar a compreensão desta diferença: se uma pessoa cai num poço, e chafurda na lama ao fundo até que alguém a tire de lá, esta pessoa foi “salva” por quem a tirou. Perfeito. E se outra pessoa está já caindo no poço, em plena queda, sem chance nenhuma de se salvar por suas próprias forças, mas alguém suficientemente forte a segura em pleno ar e a puxa para a segurança, impedindo que mergulhe abaixo, esta também foi “salva” por quem impediu a sua queda. – Assim Nossa Senhora foi salva, como quem é salvo de cair no poço, ao invés de ser salva como quem já caiu dentro dele, sujou-se todo e se machucou (o caso de todos nós). 

E era absolutamente necessário que assim fosse, por uma razão simples: Deus preparou a Virgem especialmente, desde a queda do homem (Gn 3,15), para carregar o Salvador, Deus mesmo, em seu ventre. Seu Filho não era um menino qualquer que depois “virou Deus”. Não. Ele era, ou melhor, é desde sempre e continuará, sem fim, o eterno "Eu Sou": YHWH1; DEUS.
 
Sim. A partir de sua concepção no seio da Virgem Maria, pelo Espírito Santo (Lc 1,31), Deus tomou nossa natureza humana, sem perder sua Natureza Divina, e fez-se homem. – E como vimos, o Pecado original é transmitido dos pais aos filhos. Segue daí que Jesus, sendo Deus, não poderia jamais vir ao mundo como fruto de um ventre contaminado pelo pecado; não poderia tomar carne e sangue de alguém que, como explica S. Paulo, é escravo do demônio (Hb 2,15), por tender ao pecado em virtude das consequências do Pecado original.

É preciso lembrar que o Sangue de Jesus, que nos salva, é o mesmo sangue de Maria; o Corpo de Jesus, único Sacrifício que pode nos reconciliar com Deus, é o Corpo formado do corpo de Maria, de quem o Senhor tomou sua constituição humana. Você já parou para pensar nisto? Já meditou sobre este Mistério tremendo? 
 
No Livro do Êxodo (25,10-22) vemos o extremo cuidado que Deus ordena na preparação e no trato para com a Arca da Antiga Aliança, destinada a portar as Tábuas onde Deus escrevera a Lei dada a Moisés (Dt 10,1-2). Para portar a Lei, o SENHOR manda que se faça a arca com muitíssimos e detalhados cuidados, que tem que ser de ouro e madeira de acácia, – os materiais mais nobres e puros, raros e caros na época.
 
De tão sagrada, esta Arca não pode sequer ser tocada! Em 2Sm 6,6-7, vemos como Oza, filho de Abinadab, ao perceber que os bois que carregavam o carro com a Arca tropeçam, sem pensar corre para a aparar com as mãos; e imediatamente cai morto, fulminado pela Santidade de Deus!
 
Ora, se para com a Arca da Antiga Aliança, – que guardava Tábuas de Pedra com a Lei do Antigo Testamento, – havia tanto rigor e era necessária tamanha pureza, o que não seria necessário para que a uma mulher fosse concedida a Graça incomensurável de ser, ela própria, o Tabernáculo da Nova e Eterna Aliança, que abrigaria em si mesma não tábuas de pedra, mas sim Corpo e Sangue, Alma e Divindade do Deus Vivo e Verdadeiro! Não teria que ser ela totalmente pura, imaculada? Mais uma vez, cabem as perguntas feitas acima: você já parou para pensar nisto? Já meditou sobre este Mistério tremendo? 
 
Tente imaginar como foi preparada aquela que levaria o próprio SENHOR e Salvador em seu ventre, aquela cujo sangue nutriria o Verbo de Deus feito Carne, cujo leite alimentaria Deus feito homem(!). Se a Arca que haveria de conter a Palavra escrita precisava ser puríssima, poderia o próprio Verbo do Deus Vivo e Encarnado ser concebido e se desenvolver dentro de um útero minimamente impuro? A Carne de Cristo poderia ter sido tomada e formada a partir de uma mulher comum, escrava do Pecado como qualquer outra?

Vemos claramente que não se trata de uma doutrina desprovida de fundamento, "inventada". É preciso entender que nem tudo as Sagradas Escrituras dizem explicitamente. Muito está dito implicitamente, e para ser compreendido necessita, – não sem razão, mas pelo próprio Desígnio Divino, – do ensinamento da Santa Igreja, que é, segundo as mesmas Escrituras, Casa do Deus Vivo, coluna e sustentáculo da Verdade (1Tm 3,15).
 


A controvérsia protestante
 
Como sabemos, para nossos irmãos separados tudo o que importa é o que diz o texto da Escritura, – diferentes de nós, católicos, que temos a Igreja de Cristo, Corpo Místico de Cristo, como Mãe e Mestra. – De todo modo, é possível confirmar, sim, que as Sagradas Escrituras textualmente declaram Maria preservada do Pecado original, no Evangelho segundo S. Lucas (1,28), quando o Arcanjo Gabriel se mostra à pobre Virgem de Nazaré e a saúda, dizendo: “Ave, cheia de Graça, o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres!”.
 
Mesmo assim, a controvérsia existe, porque há discordância na tradução e/ou na interpretação desta tradução. Para entendê-la, vamos apreciar agora, de forma breve, as traduções protestantes desta passagem.
 
As principais traduções protestantes trazem a palavra "agraciada" ou "favorecida" no lugar de "cheia de Graça", na passagem de Lc 1,28. Para solucionar o problema, basta esclarecer, – o que faremos a partir daqui, – que atradução literal (do grego koiné) da saudação do anjo a Maria pode ser para "cheia", "plena" ou "repleta" de Graça: a expressão quer dizer, objetivamente, que a Santa Virgem é completamente cheiatotalmente preenchida pela Graça Divina. Não foi sem razão que S. Jerônimo (séc. IV), o maior especialista cristão nas línguas bíblicas, ao traduzir as Escrituras para o latim (a Vulgata), usou a expressão Gratia plena (plena de Graça). E não existem muitas dúvidas quanto a este assunto entre os especialistas realmente importantes de hoje, sejam laicos, católicos, ortodoxos ou protestantes. Pode-se discutir doutrina, Teologia, lógica. Pode-se discorrer e elucubrar sobre as implicações do que o Anjo disse. Mas não se pode mudar o que o Anjo disse.
 
A expressão “cheia de Graça”, no original grego, é kecharitomene (κεχαριτωμένη), e expressa a Graça de Deus em plenitude. É usada por S. Paulo na Carta aos Efésios (1,5-6): “No seu Amor nos predestinou para sermos adotados como filhos seus por Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua livre Vontade, para fazer resplandecer a sua maravilhosa Graça (Charitou), que nos foi concedida por Ele no Bem-amado”.
 
Esclarecido este ponto, é preciso saber que há uma disputa insolúvel entre católicos e protestantes sobre a correta tradução do termo kecharitomene. Consideramos infrutífero entrar nessa discussão, a qual não nos pode levar senão a uma "queda de braço" sem vencedor, na palavra de um teólogo contra outro, um especialista em filologia contra outro. O que expusemos acima, evidentemente, é a posição católica, à qual fazemos nossa adesão de fé, de reta consciência diante de Deus. Podemos dizer, neste sentido, que o estudo respeitadíssimo da École Biblique et Archéologique Française de Jerusalém, do célebre Prof. Dr. Pierre Bordreuil e de tantos outros ícones do estudo das Escrituras nos idiomas originais (e também do seu contexto histórico-filológico), concorda 100% com o exposto aqui. A tradução do termo em questão deste renomado instituto é a seguinte:
 
"Kecharitomene: Cheia de Graça; literalmente: 'Tu que foste e permanecereis repleta do Favor divino".2

Aqui poderíamos entrar num novo debate: este "Favor" divino é o mesmo que Graça divina? Absolutamente sim, mas esta realmente não é a principal discordância entre católicos e protestantes. O que vemos como ponto fulcral das argumentações protestantes sobre o tema é no sentido de insistir que essa Graça ou esse Favor especial da parte de Deus para com Maria seria imerecido. – O que de modo algum é um problema, simplesmente porque é um fato mais do que claro que a doutrina católica jamais afirmou que Maria "mereceu" a Graça por si mesma, ou que foi por seus próprios méritos que recebeu a Graça. Como já dissemos de modo bem claro acima, cremos que Maria foi salva e recebeu essa Graça pelos Méritos de Cristo, único Salvador do gênero humano. Insistimos que também Maria foi salva, resgatada pelo Sacrifício do Cordeiro. – Porém, no caso dela essa salvação se deu de modo extraordinário.

Evidentemente, só pode ser "cheia de Graça" quem foi "agraciada", assim como só pode ser mergulhado quem foi molhado. Entretanto, as traduções “agraciada” ou "favorecida" não transmitem a plenitude da Graça recebida por Nossa Senhora. Tais interpretações do texto original deixam margem para uma imprecisão que simplesmente não se encontra no original grego. Okecharitomene de S. Lucas (1,28) diz, literalmente, que Maria sempre foi e sempre será plenamente cheia de Graça. E a Luz não tem comunhão com as trevas; Graça e pecado não habitam a mesma alma, porque são opostos (Rm 6,14).

Maria, além disso, é a única chamada Cheia ou Plena de Graça. Mais ainda, ela é chamada assim antes do Sacrifício do Cristo(!). Ora, uma mulher comum, uma escrava do Pecado original, alguém que peca e tornará a pecar, não poderia ser plenamente “cheia de Graça”. A Virgem, portanto, foi salva antes, no momento de sua concepção (diferente de nós), pelos Méritos de Cristo (assim como nós).

Que plenitude da Graça era essa que Maria alcançou? Era a Graça original, a Graça perdida, do tempo em que nossa natureza humana não estava sujeita ao Pecado, antes de o gênero humano cair e perder, por sua livre escolha, a Comunhão com Deus. Assim, do mesmo modo como nos tempos de Josué o SENHOR impediu que as águas do Jordão tocassem a Arca da Aliança (Js 3,11-16), o mesmo Deus também impediu que as torrentes do Pecado original tocassem a alma da Virgem no momento de sua concepção, com o fim de preparar o Tabernáculo pelo qual Deus Filho, o Cristo, viria.


"Se Maria é imaculada, porque precisou se purificar no Templo?"

Alguns dizem que a “prova” de que Maria não foi preservada do Pecado está no fato de ter cumprido os rituais de purificação (Lc 2,22) com uma oferenda pelo pecado (Lv 12,2-8). Mas o que o Evangelista diz é que “foram concluídos os dias da purificação de Maria segundo a Lei de Moisés”(Lc 2,22), e não que ela tivesse pecado. Nossa Senhora faz o sacrifício para submeter-se à Lei, assim como o próprio Cristo também o fez (Gl 4,4), mesmo sem precisar: para não ser causa de escândalo (Mt 17,26) e dar exemplo de obediência, para que saibamos obedecer à Lei de Cristo como Ele obedeceu à de Moisés.


"A Bíblia diz que todos pecaram; logo, Maria também pecou"

Outros querem ver na afirmação de S. Paulo (Rm 3,23), de que “todos pecaram”, uma evidência inconteste contra a Imaculada Conceição de Maria. Do mesmo modo, entretanto, esta afirmação não pode ser tomada genérica e literalmente, pois, se assim fosse, Nosso Senhor também teria pecado, pois Ele viveu neste mundo como homem, e a Escritura diz “todos”, genericamente. – Além disso, o mesmo Apóstolo, na mesma Epístola, fala dos que "não pecaram como Adão" (Rm 5,14).
 
Muitos outros exemplos podemos encontrar, na Bíblia, do uso desta expressão generalizante ('todo'; 'todos') sem o significado literal que não permitiria nenhuma exceção: em Mt 4,24, está escrito: “Trouxeram-lhe todosos que tinham algum mal”, mas é óbvio que nem “todos” os doentes do mundo foram à Galileia, não é? 

Em Jo 12,19, está escrito: “Nada conseguis; todos vão atrás dEle”, que é Jesus. E será que realmente todas as pessoas do mundo, sem exceção, seguem Jesus? Quem dera! Do mesmo modo, em Mt 3,5-6, vemos que “toda a Judeia e toda a terra dos arredores do Jordão” ia ser batizada por S. João Batista. Mas nós sabemos que nem todos foram batizados, já que isso deveria incluir todos os fariseus e saduceus, que tinham doutrinas divergentes entre si, e até Herodes, que o mandou matar. Logo, nem "todos" foram procurar o batismo de S. João. Assim como também nem “todo o povo”, sem exceção, assumiu a responsabilidade da morte de Cristo (como está escrito em Mt 27,25); e nem “todo o povo” que morava perto do mar (cf. Mc 2,13) ou que vivia na Cesareia de Filipe (cf. Mc 9,14) foi ouvir a Cristo, não ficando nem uma pessoa sequer em sua casa...
 
Estamos tratando aqui, simplesmente, de um recurso de linguagem chamado generalização, muito comum na cultura semita. Assim, além da exceção já evidente de Jesus na expressão generalizante usada por S. Paulo em Rm 3,23 (‘todos pecaram’), vemos que a palavra é comumente usada com o significado de “muitos” ou de “maioria”. Portanto, a passagem em questão não é e nem pode ser uma "prova" de que Maria pecou.

Por fim, depois de tantas demonstrações e comprovações claras da santidade especialíssima de Nossa Senhora, o que podemos nós dizer, então, senão o que lhe disse o Anjo? 

Ave Maria, cheia de Graça, o Senhor é convosco; bendita sois vós entre as mulheres...